Apresentação

Quando um dos pilares de sustentação da ala denominada perna-seca cedeu à ação do tempo, condenando aquela parte do Hospital à implosão, era hora da Universidade mobilizar suas forças para reinventar o futuro. Em 2010, o reitor Carlos Levi da Conceição constitui uma comissão formada pelos principais envolvidos na discussão do hospital – os diretores do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) e da Faculdade de Medicina, a Decana do Centro de Ciências da Saúde (CCS), e o coordenador do Escritório Técnico da Universidade (ETU). Para contribuir nos aspectos técnicos, convidou o coordenador do grupo de projeto e pesquisa Espaço Saúde, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (PROARQ/FAU/UFRJ).
O convite sinalizava uma atitude da reitoria naquele momento de reconhecer e valorizar as expertises próprias. O grupo Espaço Saúde desde 2002 já acumulava uma bagagem significativa na área de arquitetura dos ambientes de assistência à saúde, tanto na realização de projetos, quanto na pesquisa e formação de profissionais no âmbito da graduação e pós-graduação.
Os trabalhos da comissão objetivavam uma nova edificação, capaz de proporcionar ao HUCFF condições adequadas à realização de sua missão de formar profissionais, atender à população e produzir conhecimento.
A construção do HU iniciou-se nos anos 1950 e só veio a ser inaugurada quase 30 anos depois. Na ocasião, houve a necessidade de se rever o projeto e introduzir modificações, pois os conceitos originais não atendiam aos requisitos de então. O HUCFF é fruto do trabalho intenso realizado entre 1974-78 pela Comissão de Implantação composta e coordenada pelo professor Clementino Fraga Filho. Com extrema habilidade e competência o grupo aproveitou a oportunidade daquele momento e construiu um modelo de hospital de ensino à frente de seu tempo, baseado em conceitos de integração docente assistencial ainda atuais. Tratava-se, portanto, de um hospital voltado para o futuro alojado em prédio que já dava sinais de obsolescência.

Tomamos a missão de projetar o novo edifício, não como um rompimento, mas como resgate do espírito pioneiro que sempre esteve presente e norteou o HUCFF. Nosso esforço foi o de conjugar as expectativas, ideias e necessidades apresentadas pelos profissionais dos diversos setores com os mais atuais conceitos de arquitetura hospitalar. Para isto promovemos reuniões, pesquisamos e visitamos hospitais de ensino no Brasil e em países da Europa, como Portugal, Espanha e França. Todo o trabalho de planejamento e projeto foi realizado no ambiente universitário, promovendo a interdisciplinaridade, aglutinando professores de diferentes unidades, estudantes de graduação e pós-graduação, além de outros colaboradores.
Buscamos inspiração na própria história do HUCFF. Neste site apresentamos, brevemente, o novo projeto arquitetônico elaborado para o HUCFF e preciosos depoimentos de alguns personagens-chave, que generosamente compartilharam suas memórias. São eles professores que exerceram o cargo de diretor do hospital e outros que tiveram destacada participação, seja na comissão de implantação do HU, seja na implantação e desenvolvimento de serviços pioneiros. A este conjunto poderão ser agregados novos depoimentos.
O processo de documentação audiovisual da memória do HUCFF gerou um outro produto, o filme de 34 minutos “Memória HU – UFRJ 100 Anos”, com direção de Arthur Frazão e Mili Bursztyn. O documentário está disponível para exibições online. Os interessados em organizar uma sessão do filme podem entrar em contato através do email memoriahu@gmail.com.

Prof. Mauro Santos (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ)
Profª. Ivani Bursztyn (Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ)
Grupo de Projeto e Pesquisa Espaço Saúde (PROARQ – FAU – UFRJ)

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Escola em forma de hospital

A necessidade de um hospital para ensino clínico precede o campus do Fundão e até mesmo a criação da Universidade. Documentos históricos como relatórios, discursos de posse de professores e outras memórias comprovam que esse anseio já estava presente na Faculdade de Medicina antes de sua incorporação ao projeto universitário.
No final da década de 20, um prédio foi construído para esse fim, próximo à estação da Mangueira. Houve, porém, tanta desavença entre a equipe da Faculdade e o Conselho de Assistência Hospitalar do Brasil, que o projeto ficou parado no meio e dele restou apenas um esqueleto de concreto – ocupado por uma favela e, mais tarde, transformado no atual prédio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Em duas outras ocasiões perdeu-se a chance de adquirir o sonhado hospital-escola. Nos anos 1940, o governo federal entregou à Faculdade de Medicina o Hospital Pedro Ernesto, cujas obras estavam paralisadas. Ao examinar suas plantas, porém, os professores das áreas clínicas fizeram inúmeras solicitações de alteração, que inviabilizaram o projeto – o prédio foi devolvido ao governo e tornou-se, mais tarde, o Hospital das Clínicas da UERJ, hoje Hospital Universitário Pedro Ernesto. Já no governo Juscelino Kubitschek, foi oferecida à Faculdade a compra de um recém-construído hospital que, originalmente, destinava-se à Companhia Sul América de Seguros. Embora aprovada pela comissão universitária responsável, a transação não se concretizou – atualmente, funciona ali o Hospital Geral da Lagoa.

Os prejuízos gerados pela falta de um hospital universitário foram destacados pelo cirurgião Augusto Brandão Filho em seu discurso de posse na direção da Faculdade de Medicina, ao final da década de 1940. Sua atuação foi decisiva para que, em setembro de 1950, finalmente fossem iniciadas as obras de construção do prédio que abrigaria o hospital do Fundão, sob a liderança do arquiteto Jorge Moreira. O projeto, grandioso, previa uma área de 200.000 m2 e capacidade para 1.800 leitos.
Por falta de verbas, a construção foi paralisada em 1955. Apenas em 1967, por iniciativa do reitor Raymundo Moniz de Aragão, voltou-se a discutir o projeto do hospital, com o estabelecimento da Comissão de Implantação, sob a liderança de Clementino Fraga Filho, então vice-reitor da Universidade, e com o apoio dos arquitetos Oscar Valdetaro e Roberto Nadalucci. Os alunos também foram decisivos nesse processo, participando do movimento pela retomada das obras e organizando uma aula simbólica no pavimento térreo da estrutura de concreto, ministrada por Fraga Filho.

O trabalho da Comissão de Implantação

Em 1970, foi aprovada pelo governo militar o plano de conclusão da primeira etapa da Cidade Universitária, a fim de que estivesse pronta a tempo das comemorações dos 150 anos da Proclamação da Independência do Brasil. Entre as ações prioritárias, estava a retomada das obras do hospital, que ocorreu em 22 de janeiro de 1971.
Até o final do ano seguinte, com recursos provenientes de diferentes fontes, foram concluídos 44% por cento do projeto do hospital. Depois, porém, pelas verbas escassas, sofreu nova interrupção. A essa altura, muita gente questionava o projeto e sua viabilidade, apontando, por exemplo, o desgaste sofrido pelo prédio por causa das longas interrupções em suas obras.
Quando Hélio Fraga assumiu a reitoria da Universidade, em 1973, o cenário começou a mudar. Assumindo a construção do HU como prioridade, ele reorganizou a Comissão de Implantação em 1974 e deu prosseguimento à concorrência pública para contratação de empresa especializada para o planejamento técnico e operacional do hospital.
Quem venceu foi um consórcio norte-americano/brasileiro comandado pela Arthur D. Little International (ADL), que na mesma época também implementava dois hospitais de ensino em São Paulo. De 1975 a 1977, dezenas de técnicos estrangeiros estiveram no Brasil, atuando em conjunto com especialistas brasileiros para criar um projeto inovador e adequado às necessidades locais, incluindo, por exemplo, a revisão das plantas físicas do projeto original, os equipamentos necessários ao bom funcionamento dos diversos setores do hospital, os programas de computação para o setor administrativo do HU e 38 manuais que descreviam as rotinas a serem desenvolvidas.
O trabalho coordenado da Comissão de Implantação com a ADL permitiu o planejamento minucioso do novo hospital universitário, começando pela definição da filosofia e dos objetivos da instituição – contribuir para a melhoria do atendimento em saúde na área onde o HU está localizado; operando como referência de nível terciário, em estreita relação com o sistema público de saúde dessa área; servir de campo de treinamento para o ensino de graduação de diferentes profissões de saúde; propiciar a realização de cursos de pós-graduação, sobretudo residência; servir à educação permanente dos profissionais de saúde; treinar pessoal de nível médio e técnico; desenvolver atividades de pesquisa; e contribuir para a formação da equipe de saúde, fomentando o trabalho conjunto e o respeito às normas éticas do exercício profissional.

O processo resultou em um projeto inovador, atento às necessidades de seu corpo de funcionários, e que combinava ensino médico e assistência em saúde, levados a cabo por equipes multidisciplinares.
A parte de planejamento e execução de obras também teve sua velocidade acelerada nesse período. Realizaram-se, de 1974 a 1978, obras equivalentes a 43% da área construída do hospital – o equivalente ao que havia sido completado nos 20 anos anteriores.
Os estudos de planejamento começaram pela revisão das plantas físicas originais, que sofreram diversas modificações: a inclusão de um centro de diagnóstico que ocupou todo o terceiro andar do hospital; a construção do setor de hemoterapia, que mais tarde seria um dos mais completos e modernos do país; a instalação do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias no quinto andar; a conclusão do nono pavimento, para atividades didáticas; a reestruturação do centro cirúrgico, que ganhou novas salas e instalações mais apropriadas visando à segurança sanitária e circulação de materiais; entre outras.
Optou-se, também, pela não conclusão de uma ala do hospital, por falta de verbas para equipá-la com a infraestrutura necessária ao funcionamento. A Comissão receava, porém, que sua demolição, naquela época, tivesse um impacto negativo sobre a retomada das obras do hospital – como justificar iniciar uma obra com um grande gasto para demolição de algo que nem chegou a ser acabado? A ala foi, então, abandonada e permaneceu assim por anos, ficando conhecida como “perna seca”, até sua implosão em dezembro de 2010.

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Profª. Sylvia de Mello Vargas
Diretora da Faculdade de Medicina da UFRJ • 1994-1998

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Prof. Henri Jouval
Membro da Comissão de implantação
Primeiro coordenador do serviço ambulatorial do HUCFF

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Profª. Alice Rosa
Primeira coordenadora da Coordenação de Atividades Educacionais do HUCFF

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Inovando o ensino médico

O Hospital Universitário foi implantado em um período decisivo do ensino médico no Brasil. Em 1974, a Comissão de Especialistas do Ensino Médico do Ministério da Educação publicou um documento no qual reconhecia as razões da existência e as características dos hospitais universitários mais modernos, sem deixar de lado a perspectiva de que uma formação médica completa incluía, também, a passagem por diferentes unidades do sistema de saúde, de modo que os estudantes participassem de atendimentos e prestação de cuidados em nível primário (atenção básica nos postos de saúde), secundário (atendimento especializado) e terciário (serviços de alta complexidade).
Paralelamente, a Associação Brasileira de Educação Médica recomendava a formação geral do médico em quatro áreas básicas – clínica, cirurgia, pediatria e ginecologia/obstetrícia – e a valorização dos aspectos preventivos, e não apenas curativos, do atendimento em saúde. Já na área assistencial, crescia o movimento pela regionalização e hierarquização dos serviços de saúde, de modo a tornar o sistema, como um todo, mais eficiente.

De uma maneira geral, podemos destacar, ainda, dois aspectos que vinham sendo considerados fundamentais para que a formação dos médicos brasileiros desse um salto de qualidade. O primeiro era uma formação voltada para as necessidades locais, isto é, para os problemas de saúde pública enfrentados pela população, mais do que a simples absorção de conhecimentos e tecnologias de ponta desenvolvidos em outros países. O segundo era que o médico deveria ter uma formação que não fosse restrita ao hospital, mas ampla e contextualizada, com foco na prevenção e promoção da saúde de forma articulada com equipes de nutrição, serviço social, fisioterapia etc.
O documento básico do HU, publicado em 1975, tem a influência de todas essas ideias. O novo hospital aspirava ser aberto à comunidade, integrando a rede local de atendimento, ao mesmo tempo em que constituía-se referência para atendimento a pacientes com doenças complexas e que, por isso, necessitavam de cuidados extras no diagnóstico e nas terapias.

O papel assistencial

A comunhão entre ensino e assistência deve ser ressaltada como um aspecto inovador particularmente relevante no período de implantação do HU – até então, eram muito separados esses dois aspectos: colocavam-se, de um lado, as instituições de formação e, de outro, as de atendimento. A implementação dessa ideia, no entanto, enfrentou resistência de parte dos docentes, e a solução encontrada foi criar um modus operandi em que o hospital representasse uma miniatura do sistema de saúde, resguardando-se para que o atendimento básico não assoberbasse a capacidade do hospital de maneira a impedir os atendimentos de alta complexidade.
Foram criadas divisões de Saúde da Comunidade, Enfermagem e Apoio Assistencial, de modo a formar uma rede de apoio multidisciplinar que desse suporte à Divisão Médica no exercício das atividades de assistência. A Divisão de Saúde da Comunidade, por exemplo, desenvolveu programas extra hospitalares de promoção da saúde e prevenção de doenças. Outra divisão ficou responsável pelos serviços de farmácia, nutrição, serviço social e documentação médica. Nenhuma delas estava subordinada à área médica.

Sendo o HU, acima de tudo, uma unidade de saúde, seu foco principal precisava ser, obrigatoriamente, o paciente. Por isso, uma série de iniciativas foram tomadas para garantir seu bom atendimento: setores de internação e ambulatórios confortáveis, áreas de lazer e refeitórios para os doentes sem restrição de locomoção, cuidado com as roupas de cama e de uso diário etc. Uma associação foi criada para arrecadar doações para os pacientes mais pobres, fornecendo-lhes medicamentos, próteses e outros itens.
Com essa mentalidade, o HU tornou-se parte importante do sistema de atendimento à saúde em seu distrito sanitário – a Ilha do Governador. Em uma articulação com as autoridades estaduais, a previdência social e autoridades locais, formou-se uma rede de atendimento, na qual o hospital universitário era o representante do setor terciário. Para essa articulação funcionar, foram criados, por exemplo, uma central de vagas de internação e um sistema de triagem, recepção e derivação. Como resultado, a região se beneficiou de um sistema mais coeso de atendimento, que serviu de modelo a ser replicado em outros locais.